sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Sobre quando eu concordaria com a sociedade do instinto

"Chegamos a essa convicção pela conclusão de que o homem que mais goza de faustosa magnificência é justamente o que menos dela necessita; (...)"
Epicuro, Pensamentos

Lendo Epicuro penso ter entendido melhor vários passos de sua cadeia argumentativa em prol da sociedade do instinto e sua crítica à razão. O que argumenta, se lhe entendo bem, é basicamente que nossa consciência nos seja um fardo. Creio que consciência seja um nome mais apropriado para este "conhecimento de si" do que o termo razão, que você tem utilizado. Penso que não criticas a razão e, sim, a consciência. A consciência vem precedida da razão, a consciência parece levar à razão, mas a consciência não é a razão. Considero a razão como um artifício de alguns seres conscientes para melhor entenderem o universo ao seu redor.

Assim, a crítica à esta sociedade em que vivemos basearia-se no fato de que sabermos o que somos, quem somos e qual o nosso lugar no universo nos trás um forte sentimento de angústia e pesar. Como queremos ser felizes e gozar ao máximo, sem nos preocuparmos com idiotices, nossa consciência acaba se tornando nossa inimiga. Penso que tenha como premissa também que "todos os outros animais são mais felizes do que o homem", dado que como Epicuro, você parece acreditar que "o homem que mais goza de faustosa magnificência é justamente o que menos dela necessita". Então, se ele de nada necessita, ele apenas vive sem pensar, ele age como um animal, ele segue à risca todos os seus instintos e tenta viver assim tanto quanto puder, somente obedecendo às suas necessidades mais básicas e urgentes. Incapaz de prever o futuro, este ser de puro instinto vive apenas o presente. Acorda quando lhe dá vontade e tem fome, aí então precisa preocupar-se em conseguir comida. Se tem sorte e é capaz disto conseguir, pode ficar se preocupando com alguma outra coisa ou com procurar alguma fêmea até o momento em que outro instinto básico lhe bata à porta. Aí então seria hora de beber uma água, defecar ou dormir mais um pouco. Uma sociedade de seres assim seria mesmo inimaginável e, mais do que isso, totalmente desnecessária, uma vez que cada um cuidaria apenas de suas necessidades e ponto final. É mesmo assim que observamos a natureza e, definitivamente, nunca tive a impressão de me deparar com um animal que me parecesse infeliz. A liberdade na sociedade do instinto seria total e dependeria apenas da vontade de cada um e da capacidade para poder fazê-lo chegar ali, acolá, alhures.

Ora, a sociedade do instinto então prega que voltemos a ser animais? Ou ela prega que nos pareçamos mais com animais, mas guardemos um pouco do que aprendemos em nossa experiência na sociedade? Se ela prega que voltemos a ser animais, ela torna-se absurda e impossível de ser alcançada, pois toda a sociedade já está viciada nesse modo de ser e, à menos que um holocausto destruisse todo o mundo e, com ele, alguns módulos cerebrais humanos, não conseguiríamos nos ver livre dela. Mesmo com o holocausto, seria muito mais provável o surgimento de uma nova sociedade como esta que temos, do que a volta a um estado animal. Se a sociedade do instinto prega que nos pareçamos mais com sociedades animais, então o ponto a se discutir seria: quais os pontos-chave de uma sociedade do instinto? Minha própria e tão sonhada sociedade ideal, montada por pessoas bastante esclarecidas e disposta a gastar boa parte de seus tempos de vida em prol da ajuda ao próximo e da auto-gestão da própria sociedade, poderia muito bem ser uma sociedade mais próxima do instinto. E muito provavelmente seria, em muitos aspectos. Na contra-mão desta sociedade instintiva, entretanto, prego a educação filosófica de todas as pessoas. As pessoas acabariam por se parecer mais com animais e a seguir seus instintos por estarem desligadas de qualquer padrão pré-estabelecido sobre qualquer coisa. Aquele que tudo questiona, não pode ter um padrão fixo, ele terá padrões variáveis ao longo do tempo, ainda que seguindo uma linha comum derivada diretamente a partir de sua natureza biológica e, mais especificamente, de seus genes e da interação destes com o meio ambiente e sua sociedade.

O quero, portanto, saber, é: O que você prega: (1) que voltemos a viver como animais e retornemos à sociedade do instinto que já tivemos quando habitávamos a selva?; ou (2) que nossa sociedade seja a mais próxima possível de nossos instintos?

Se prega a primeira derivação, penso que é um louco e que, como os orientais, sonha em se transformar em uma águia ou renascer na pele de algum animal sem preocupações racionalistas quaiquer. Se prega a segunda, penso que pode ter razão. E então, pergunto-lhe: quais seriam as modificações-chave a serem feitas nesta atual sociedade que temos para levar-nos mais diretamente à sociedade do instinto que imagina? Uma vez que estas modificações principais se tornem tão bem argumentadas que sejam auto-evidentes, penso que poderá agir diretamente no intuito de transformar nossa sociedade em algo assim. Ou será que pretende apenas viver aqui neste blog, neste mundo das idéias?