A AMORALIDADE COMO PRINCÍPIO
Caro Francisco, sou obrigado a concordar por alto com sua argumentação, ao mesmo tempo em que discordo de diversos pontos. Concordo que a compreensão de nossos instintos nos ajudará a moldar uma sociedade mais agradável, mais justa, mais feliz. Concordo que a sociobiologia já foi usada para o mal, mas nem por isso devemos perder de vista seu potencial para o bem, como concordo que esse bem só será alcançado com o estudo do comportamento humano em larga escala, e não através do mapeamento genético de indivíduos, o que pode levar a cenários terríveis de preconceito e exclusão, como no filme de ficção-científica Gattaca, que você cita.
Entretanto, o problema é justamente de onde extrair a moral que permite distinguir entre o bem e o mal para uma sociedade: de onde vêm nossos valores e nosso julgamento acerca do que é uma sociedade melhor? Discordo veementemente de sua proposição do instinto como inimigo. É como dizer que o maior inimigo de uma árvore são suas raízes, ou os nutrientes em seu solo, ou a água e a luz do Sol que permitem sua fotossíntese. Ou como dizer que o maior inimigo das aves migratórias é sua capacidade de se orientar à noite pelas estrelas, ou pelo campo magnético da Terra. Trata-se, no meu entender, de uma visão equivocada do instinto.
Infelizmente nossos mais caros sentimentos sobre o bem e o mal vêm de nossa civilização ocidental, cristã, católica, falsamente democrática, imperialista, consumista e capitalista, entre muitos outros ismos que mal saberíamos distinguir, tão profundamente embrenhados estamos nessa selva milenar de valores arraigados. Pudéssemos ver o mundo aos olhos de vikings antigos, ou de orientais budistas, ou de nativos americanos pré-Colombo, e perceberíamos como todos esses valores estão longe de ser necessários, sendo apenas contingentes, ou seja, tendo surgido e se fixado apenas pelos acasos e fortuidades da história.
O instinto, é bom que tentemos defini-lo, é para mim aquela parte da humanidade que independe da cultura, embora possa se expressar variavelmente conforme a cultura. Por exemplo, todos temos o instinto de procurar comida quando estamos com fome, mas o comportamento associado a este instinto será diferente caso uma pessoa se encontre dentro de um avião, ou em um ônibus, ou num velório, ou na sala de aula, ou na própria casa. Ao longo da história a cultura vai e vem, costumes surgem e desaparecem, mas tudo gira em torno do instinto, o único imutável, o único que, erigido sobre nossas bases genéticas, é tão constante quanto nosso número de dedos, nossa percepção auditiva ou a estrutura química de nosso suor.
O produto do instinto muda conforme o meio, mas sempre que o meio retornar ao ponto de partida, o produto do instinto tornará a ser o mesmo.
Podemos, então, esperar extrair algum conceito moral desta entidade ultra-milenar que é o instinto? Quando você diz que as pessoas são iguais, e que não devem existir mais machos-alfa, ou a dominação de uns sobre outros, creio que trata-se de sonhos utópicos, e até mesmo indesejáveis. Coloque crianças juntas, em qualquer lugar do mundo, e logo se definirão os líderes, os árbitros das regras nas brincadeiras, como surgirão também os párias, aqueles que quase sempre perdem e são humilhados pelos demais. Criar uma sociedade que ensine as crianças a não agir assim pode funcionar, mas tão logo esta nova cultura desapareça, ou seja substituída por outro modismo, as pessoas tornarão a se dominar umas às outras, como sempre fizeram.
O instinto é inescapável. O que podemos fazer é moldar a sociedade de forma que a atuação do instinto cause o menor mal possível.
Mas então voltamos ao ponto de partida, o que é o mal? O que é o bem? Na natureza não existem tais conceitos, é o que se pensa, então por que damos tanto valor a eles? Seriam apenas uma maneira de nos distinguirmos dos demais animais? De mantermos viva uma parte daquele antropocentrismo outrora tão caro a nós, e que pouco a pouco foi se perdendo através dos últimos séculos, de Galileu a Darwin? Chimpanzés mudaram seu comportamento em relação a uma fêmea que assassinou o filhote de outra, tratando-a com desdém, retirando qualquer privilégio que ela antes possuísse, seja na partilha alimentar, na definição dos locais de sono ou no hábito de esperar os que se atrasam durante uma caminhada. E essa mudança durou bastante tempo. Serão os chimpanzés capazes de definir certos atos, como o assassinato de uma criança indefesa por outra fêmea que não a sua mãe, como algo intrinsecamente mau? Serão eles capazes de julgar uns aos outros conforme sua própria moral? Eu acredito que sim, e não tenho motivos para duvidar dessas e de outras capacidades de nossos primos evolutivos. E creio ainda que o conceito de bem e mal é tão instintivo neles quanto em nós, seres sociais que somos.
O bem, num contexto social, pode ser visto apenas como a capacidade de uma sociedade de se preservar, de manter sadios seus integrantes, a despeito do que ocorra com os integrantes de outras sociedades. Daí o assassinato ser mau numa cidade, mas não numa guerra. Hoje, é claro, a globalização está redefinindo o conceito de sociedade, e pela primeira vez é comum sentirmos horror ante o assassinato de inimigos de guerra do outro lado do planeta.
Por outro lado, a guerra, como a dominação dos mais fracos pelos mais fortes, sempre fizeram parte do instinto humano. Como podemos conciliar isto com uma sociedade ideal, onde haja o mínimo de guerras e de exploração? Onde haja o mínimo de sofrimento - posto que é do nosso instinto fugir do sofrimento? Uma parte da resposta está dada: a globalização e as uniões entre os países, como ocorre hoje na Comunidade Européia, e como se tenta arduamente no Mercosul, estão ampliando nosso conceito de sociedade. No dia em que cada cidadão estiver convicto que sua sociedade é todo o planeta Terra, com seus mais de 6,5 bilhões de pessoas, as guerras serão vistas com um repúdio muito maior.
Entretanto, guerras civis são tão ou mais comuns que guerras entre sociedades distintas, e também têm como mote causador a disputa pelo poder. Sim, o poder, o alimento dos espíritos fortes, guerreiros, tão necessário a certas mentes como o oxigênio que respiramos é para todos nós.
As pessoas não são nem nunca serão iguais. Para a maior parte do povo, é mais confortável, mais simples, mais cômodo seguir o dono do poder, do que lutar para ter poder. A mesma diferença genética e ambiental que faz uns altos e outros baixos, uns escuros e outros claros, uns rápidos e outros lentos, faz de uns mais ávidos por possuir poder do que outros. Se a dominação de uns por outros é instintiva e, portanto, inevitável, é porque alguns querem ser dominados, enquanto outros querem dominar. O que pode ser transformado na sociedade, em prol do maior bem-estar geral, é a distância existente entre o alto e o baixo poder, ou entre o poder e a ausência dele.
Numa tribo de caçadores-coletores, qualquer indivíduo mora a menos de duzentos passos da casa do cacique, e as decisões comunitárias são tomadas pela participação de todos falando ao mesmo tempo, até que um consenso seja alcançado. Em nossa pseudo-democracia moderna, a distância do mais pobre dos mortais até o presidente é de milhares de quilômetros, tanto físicos quanto burocráticos, sendo que a distância física é, sem dúvida, a menor delas. Toda a estrutura da sociedade, sua justiça, por exemplo, é construída de forma que o poder paire estratosfericamente acima da cabeça do indivíduo comum, e esteja ali a salvo para perpetrar seus mandos e desmandos, como aumentos do próprio salário, a bel prazer, enquanto o povo assiste calado, boquiaberto e inerte.
Se é inevitável que uns dominem e outros sejam dominados, a sociedade ideal é aquela onde a distância entre uns e outros seja mínima, de forma que a dominação seja ao menos inteligível, e que o cidadão não entre finalmente em seu caixão sem nunca ter compreendido para que viveu e para que pagou ao Estado mais do que pôde dar à própria família.
Concluindo, o maior inimigo do homem é o próprio homem. São as artimanhas racional e maquiavelicamente projetadas para aumentar o escopo e o alcance da dominação, para esconder os erros da classe dominante e isolá-la dos riscos que a classe dominada lhe impõe. Proponho como ainda o maior inimigo do homem a sua mais recente habilidade, a última e mais imperfeita inovação evolutiva, sua própria razão.
Por Rodrigo Dias
Entretanto, o problema é justamente de onde extrair a moral que permite distinguir entre o bem e o mal para uma sociedade: de onde vêm nossos valores e nosso julgamento acerca do que é uma sociedade melhor? Discordo veementemente de sua proposição do instinto como inimigo. É como dizer que o maior inimigo de uma árvore são suas raízes, ou os nutrientes em seu solo, ou a água e a luz do Sol que permitem sua fotossíntese. Ou como dizer que o maior inimigo das aves migratórias é sua capacidade de se orientar à noite pelas estrelas, ou pelo campo magnético da Terra. Trata-se, no meu entender, de uma visão equivocada do instinto.
Infelizmente nossos mais caros sentimentos sobre o bem e o mal vêm de nossa civilização ocidental, cristã, católica, falsamente democrática, imperialista, consumista e capitalista, entre muitos outros ismos que mal saberíamos distinguir, tão profundamente embrenhados estamos nessa selva milenar de valores arraigados. Pudéssemos ver o mundo aos olhos de vikings antigos, ou de orientais budistas, ou de nativos americanos pré-Colombo, e perceberíamos como todos esses valores estão longe de ser necessários, sendo apenas contingentes, ou seja, tendo surgido e se fixado apenas pelos acasos e fortuidades da história.
O instinto, é bom que tentemos defini-lo, é para mim aquela parte da humanidade que independe da cultura, embora possa se expressar variavelmente conforme a cultura. Por exemplo, todos temos o instinto de procurar comida quando estamos com fome, mas o comportamento associado a este instinto será diferente caso uma pessoa se encontre dentro de um avião, ou em um ônibus, ou num velório, ou na sala de aula, ou na própria casa. Ao longo da história a cultura vai e vem, costumes surgem e desaparecem, mas tudo gira em torno do instinto, o único imutável, o único que, erigido sobre nossas bases genéticas, é tão constante quanto nosso número de dedos, nossa percepção auditiva ou a estrutura química de nosso suor.
O produto do instinto muda conforme o meio, mas sempre que o meio retornar ao ponto de partida, o produto do instinto tornará a ser o mesmo.
Podemos, então, esperar extrair algum conceito moral desta entidade ultra-milenar que é o instinto? Quando você diz que as pessoas são iguais, e que não devem existir mais machos-alfa, ou a dominação de uns sobre outros, creio que trata-se de sonhos utópicos, e até mesmo indesejáveis. Coloque crianças juntas, em qualquer lugar do mundo, e logo se definirão os líderes, os árbitros das regras nas brincadeiras, como surgirão também os párias, aqueles que quase sempre perdem e são humilhados pelos demais. Criar uma sociedade que ensine as crianças a não agir assim pode funcionar, mas tão logo esta nova cultura desapareça, ou seja substituída por outro modismo, as pessoas tornarão a se dominar umas às outras, como sempre fizeram.
O instinto é inescapável. O que podemos fazer é moldar a sociedade de forma que a atuação do instinto cause o menor mal possível.
Mas então voltamos ao ponto de partida, o que é o mal? O que é o bem? Na natureza não existem tais conceitos, é o que se pensa, então por que damos tanto valor a eles? Seriam apenas uma maneira de nos distinguirmos dos demais animais? De mantermos viva uma parte daquele antropocentrismo outrora tão caro a nós, e que pouco a pouco foi se perdendo através dos últimos séculos, de Galileu a Darwin? Chimpanzés mudaram seu comportamento em relação a uma fêmea que assassinou o filhote de outra, tratando-a com desdém, retirando qualquer privilégio que ela antes possuísse, seja na partilha alimentar, na definição dos locais de sono ou no hábito de esperar os que se atrasam durante uma caminhada. E essa mudança durou bastante tempo. Serão os chimpanzés capazes de definir certos atos, como o assassinato de uma criança indefesa por outra fêmea que não a sua mãe, como algo intrinsecamente mau? Serão eles capazes de julgar uns aos outros conforme sua própria moral? Eu acredito que sim, e não tenho motivos para duvidar dessas e de outras capacidades de nossos primos evolutivos. E creio ainda que o conceito de bem e mal é tão instintivo neles quanto em nós, seres sociais que somos.
O bem, num contexto social, pode ser visto apenas como a capacidade de uma sociedade de se preservar, de manter sadios seus integrantes, a despeito do que ocorra com os integrantes de outras sociedades. Daí o assassinato ser mau numa cidade, mas não numa guerra. Hoje, é claro, a globalização está redefinindo o conceito de sociedade, e pela primeira vez é comum sentirmos horror ante o assassinato de inimigos de guerra do outro lado do planeta.
Por outro lado, a guerra, como a dominação dos mais fracos pelos mais fortes, sempre fizeram parte do instinto humano. Como podemos conciliar isto com uma sociedade ideal, onde haja o mínimo de guerras e de exploração? Onde haja o mínimo de sofrimento - posto que é do nosso instinto fugir do sofrimento? Uma parte da resposta está dada: a globalização e as uniões entre os países, como ocorre hoje na Comunidade Européia, e como se tenta arduamente no Mercosul, estão ampliando nosso conceito de sociedade. No dia em que cada cidadão estiver convicto que sua sociedade é todo o planeta Terra, com seus mais de 6,5 bilhões de pessoas, as guerras serão vistas com um repúdio muito maior.
Entretanto, guerras civis são tão ou mais comuns que guerras entre sociedades distintas, e também têm como mote causador a disputa pelo poder. Sim, o poder, o alimento dos espíritos fortes, guerreiros, tão necessário a certas mentes como o oxigênio que respiramos é para todos nós.
As pessoas não são nem nunca serão iguais. Para a maior parte do povo, é mais confortável, mais simples, mais cômodo seguir o dono do poder, do que lutar para ter poder. A mesma diferença genética e ambiental que faz uns altos e outros baixos, uns escuros e outros claros, uns rápidos e outros lentos, faz de uns mais ávidos por possuir poder do que outros. Se a dominação de uns por outros é instintiva e, portanto, inevitável, é porque alguns querem ser dominados, enquanto outros querem dominar. O que pode ser transformado na sociedade, em prol do maior bem-estar geral, é a distância existente entre o alto e o baixo poder, ou entre o poder e a ausência dele.
Numa tribo de caçadores-coletores, qualquer indivíduo mora a menos de duzentos passos da casa do cacique, e as decisões comunitárias são tomadas pela participação de todos falando ao mesmo tempo, até que um consenso seja alcançado. Em nossa pseudo-democracia moderna, a distância do mais pobre dos mortais até o presidente é de milhares de quilômetros, tanto físicos quanto burocráticos, sendo que a distância física é, sem dúvida, a menor delas. Toda a estrutura da sociedade, sua justiça, por exemplo, é construída de forma que o poder paire estratosfericamente acima da cabeça do indivíduo comum, e esteja ali a salvo para perpetrar seus mandos e desmandos, como aumentos do próprio salário, a bel prazer, enquanto o povo assiste calado, boquiaberto e inerte.
Se é inevitável que uns dominem e outros sejam dominados, a sociedade ideal é aquela onde a distância entre uns e outros seja mínima, de forma que a dominação seja ao menos inteligível, e que o cidadão não entre finalmente em seu caixão sem nunca ter compreendido para que viveu e para que pagou ao Estado mais do que pôde dar à própria família.
Concluindo, o maior inimigo do homem é o próprio homem. São as artimanhas racional e maquiavelicamente projetadas para aumentar o escopo e o alcance da dominação, para esconder os erros da classe dominante e isolá-la dos riscos que a classe dominada lhe impõe. Proponho como ainda o maior inimigo do homem a sua mais recente habilidade, a última e mais imperfeita inovação evolutiva, sua própria razão.
Por Rodrigo Dias
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