terça-feira, fevereiro 13, 2007

Moral-instintividade e os caminhos para uma super-sociedade

Ilustríssimo Rodrigo, poderia muito bem começar esta resposta eletrônica a evidenciar os pontos que temos de acordo, assim como parece ter sido proposto subliminarmente por você na mensagem anterior, quando assim procedeu. Entretanto sou homem livre e não aceito ser coagido a reagir de uma maneira alguma que seja diferente daquela a qual desejo intrinsecamente. Dessa forma, começo minha resposta como bem entendo, ou seja, desta forma.

Ora, jamais comentei que o instinto fosse apenas um inimigo. O instinto pode ser visto como amigo várias vezes e, além do mais, como definirmos inequivocamente o conceito do que seja um "inimigo"? De fato, desconheço qualquer característica humana ou inumana que seja seja de todo boa ou ruim e, além disso, todas as definições humanas de amigo, inimigo, bom ou ruim apresentam um discutível e evidente cunho moral. Do que devemos nos lembrar, apesar de tudo isso, como bem prega o senhor, que a amoralidade é sem dúvida o imperativo universal que está além do homem.

Pois que somos homens. Pois que temos nosso telencéfalo desenvolvido. Pois que somos pretensiosamente racionais. Pois que para tudo que façamos, tendemos a associar a esta ação um nível tal mais relacionado ao bom ou ao mau. "Quão bom é isso?", "Quão mau é aquilo?" E podemos observar ainda que esta dicotomia tem origem em nossos próprios instintos, pois você mesmo concorda que também nossos irmãos chimpanzés apresentam o mesmo tipo de comportamento.

Eis, portanto, que toda a moral humana origina-se a partir de nossos instintos. Já concordamos que a natureza do universo é amoral, mas será também a evolução dos organismos amoral? A um observador externo, certamente sim, e parece um contra-senso tentar salvar uma zebra de ser devorada por um leão. Mas ponha-se no lugar da zebra: como encarar com amoralidade o fato de perder sua existência para tornar-se alimento de um outro animal, ainda que o suposto rei deles? As zebras não serão amorais e fugirão, tanto quanto puderem, do faminto felino. A evolução nos ensina a preservar nossa sobrevivência; e este me parece ser um valor claramente moral. Talvez num mundo de bactérias e de cadeias ecológicas bacterianas, não exista per si nenhum tipo de moral-animal e que estes organismos não tenham nenhuma punção por fugir ou perseguir outros que lhe servam de alimento. Nesse inóspito mundo microbiano talvez irreal, seria de se supor que servir ou não de alimento para outrem dependeria antes de caracteres ambientais (como concentrações de moléculas no meio) do que de caracteres biológicos (como o instinto de fuga). Pois que, em certo momento, algum animal parece ter aprendido que fugir de um certo gradiente-predador parecia "bom" e que ir em direção a ele parecia "ruim". Os organismos que tenham feito esse tipo de associação, conseguiram vencer a luta pela sobrevivência contra aqueles que iam na direção de seus predadores ou mesmo contra aqueles que permaneciam indiferentes a eles. Uma certo tipo de moral evolutiva nasceu nesse instante.

A moral, portanto, o que quer que seja ela, vem diretamente do nosso instinto e de nossas pulsões mais básicas de sobrevivência. É incrível observar como tantos antes de nós simplesmente não conseguiam perceber que a moral humana está direta e intrinsecamente ligada ao animal humano e, assim, aos nossos instintos. É de se imaginar também que outros animais terão também outras regras morais; e também algumas das mesmas que temos, dado que todos fomos moldados pelo cego processo da seleção natural.

A moral socialista é um tipo de moral humana. Assim como, sussurremos, a moral nazista. Todas as morais que produzimos são morais humanas, parcialmente baseadas em alguns de nossos instintos. E pode-se prever que haverão ainda de existir infinitas outras morais que nosso cérebro e nossa biologia não nos permitem alcançar. Oh, como somos pequenos e ignóbeis.

Ora, voltemos à nossa discussão principal, o valor moral que associa todos os eventos relacionados ao instinto como "bons" e que você defende tão entusiasticamente, é só mais uma das morais que podemos defender; considerando que somos o que somos. Uma outra moral, que associa determinados fatores instintivos ao bem e outros ao mal, é aquela que defendo. Como pesar qual é a melhor moral? Como pesar a moral que decide sobre a melhor moral? Nosso destino será sempre andar em círculos. Vale lembrar ainda que, a um observador externo e considerando a natureza mais pura do universo, todas as morais são amorais! Mas não deixamos de viver apenas porque temos a certeza da morte; trabalhemos mais sobre esta maravilhosa arte do filosofar.

Sobre esta moral-instintividade, vale ainda notar que o fato dos mais diferentes povos associarem comportamentos semelhantes ao "mal" -- como o fazem com o assassinato ou o estupro -- vem mais uma vez corroborar a intrínseca ligação de nossa moral com nosso instinto. Todas as semelhanças entre os valores morais observados entre diferentes culturas humanas que jamais puderam trocaram informações, podem ser atribuídas, com total propriedade, à uma herança moral oriunda de nossos instintos. Não há sociedades de todas as formas imagináveis e, de fato, a forma como o homem se organiza socialmente não me parece assim tão diversificada; haja vista que a maioria de nós não preza a criatividade com o louvor que ela merece. A maioria parece querer ser, simplesmente, a maioria. E parecem se adaptar bem a esta massificação que tem ocorrido cada vez com maior intensidade, agora em escala global e mundial, unindo todo o mundo com um mesmo pensamento, uma mesma cultura, um mesmo tudo. Quanto temos perdido informação cultural ultimamente! É uma pena, já fomos tão mais interessantes! E parece-me que todo esse problema comece mesmo em nosso próprio instinto: o fato de querermos nos parecer com a classe dominante, com os mais ricos e poderosos; isso tem acabado com nossa informação cultural. O instinto, meu amigo, não é sempre bom.

Concordo com o senhor também quando dizes que minha teoria nos fará, para sempre, brigar com nossa própria natureza. Esta é uma triste verdade. Desejo mesmo afastar de nossa sociedade aqueles valores que associo moral-instintivamente como danosos a ela.

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Mas, por um instante, permita-me afastar esta nossa agradável discussão dos temas biológicos e passemos a tratar puramente da questão do social. Tentemos nos esquecer -- tanto quanto pudermos -- de nossos instintos e imaginemos como se constituiria um sociedade ideal qualquer.

Não podendo fazer de forma diferente para tanto -- quiçá isso nos fosse possível! --, consideremo-nos também baseados em tudo aquilo que aprendemos ao longo de nossa civilização ocidental, cristã, católica, falsamente democrática, imperialista, consumista, capitalista, casual e fortuita. Se o instinto nos é inescapável -- e disso não resta a menor dúvida --, assim também é nossa condição social e histórica .

Além de estar de acordo com os pensamentos dos mais diversos filósofos residentes nas mais diversas nações e períodos do pensamento humano; e tratando agora sobre esta nossa utópica sociedade ideal, seria de se imaginar, moral-instintivamente (dado que toda moral tem uma base instintiva), um lugar onde não houvessem injustiças contra quaisquer tipos de indivíduos. Um lugar onde todos nascessem socialmente iguais e tivessem as mesmas oportunidades na vida. Onde se pudesse ter ao menos um mínimo para a sobrevivência, onde todos fossem bem educados, onde os indivíduos fossem livres, onde pudessem fazer o que bem entendessem durante todo o tempo e onde prezassem pelos bens de sua sociedade tanto quanto prezam por seus bens pessoais. Oh, como gostaria de viver neste lugar!

Ora, a dominação seria palavra desconhecida neste lugar. Ali, se perguntássemos a todos aqueles que se diziam "querer" ser dominados, se trocariam de papel com os dominadores, eles não responderiam um exultante "SIM!" antes que um único segundo tivesse se passado, pois lá simplesmente não se entenderia o conceito de dominar ou ser dominado. Embora se entendesse ali, perfeitamente, o conceito de "querer", com ou sem negrito.

Me vêm agora à cabeça, a história sobre aquelas crianças brincando reunidas. Imagino-as a vivendo em minha sociedade ideal, à qual prefiro chamar de super-sociedade. Uso seu próprio exemplo para escolher aquelas que têm uma maior habilidade de liderança a ocuparem, moral-instintivamente, o lugar de líderes em algum movimento social que porventura lhes passasse em mente. Às outras, terão outros instintos e dons: talvez tenham um ouvido muito bom e se tornem profissionais da música, umas terão força extrema e poderão construir monumentos, outras serão boas em matemática ou trabalharão bem a madeira. Alguns ainda terão dons para os esportes, mas terão mais prazer em ser cientistas. Deixemos que elas mesmas escolham o que querem fazer. Nenhum ser humano é completamente idiota e todos gostam de realizar algum tipo de trabalho. Demos a eles o trabalho que quiserem e remuneremos igualmente a todos. Não há de existir profissões melhores ou piores, apenas profissões e profissões. Assim, com todos fazendo o que gostam, é ridículo querer pagar mais a uns do que a outros. Todos, portanto, seriam igualmente remunerados. Eduque a todos dizendo que o bem coletivo é a mais cara das virtudes, mostre a eles como a desigualdade e o desprezo pelo social esteve em vias de acabar com a humanidade no século XXI. Assim teremos uma sociedade auto-sustentável, onde muitos sacrificarão uma parcela significativa de seu tempo a esforçar-se para manter a sociedade viva e o bem estar comum. Deus algum, ainda que inexistente, teria preferido o Olimpo a esta super-sociedade.

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Seguindo esta lógica devemos nos esforçar, portanto, para tentarmos aproximar, tanto quanto pudermos, nossa sociedade atual desta super-sociedade. A chave para isso chama-se educação. Mas perceba: não prego a tirania memética e a lavagem cerebral dos indivíduos. Prego a boa educação e a capacidade de fazer todos compreenderem, racionalmente, o motivo pelo qual devem prezar pelo bem comum. Certamente entenderão; uma super-sociedade só pode ser construída por super-homens.

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De fato, ninguém é igual a ninguém, mas também não são todos tão diferentes assim. Ao considerarmos todas nossas ações e dons, nossa natureza biológica limita o que podemos ser ou fazer para ambos os lados -- do pior ao melhor -- e nos apresenta um conjunto limitado de possibilidades por onde seguir. Num exemplo talvez excessivamente exagerado, um surdo sem qualquer estudo jamais será bom compositor.

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Sobre a distância entre nós e eles, os governantes, realmente isso parece consistir em um problema preocupante em sua sociedade do instinto. De fato, a super-sociedade que prego é totalmente anárquica, de maneira que a distância entre dominado-dominador será a mínima possível e igual a zero. Não haverão dominadores nem dominados. Pois que a super-sociedade evoluirá de tal modo que chegará a um ponto em que também não se lerá mais a palavra "governo" senão nos livros de história.

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Devo confessar, cá entre nós, que achei um tanto quanto despropositada essa sua conclusão, pois além de hobbesianamente discutível, tenta a chegar a uma conclusão definitiva -- algo que estamos zaratustramente longe. Como se nisso não se bastasse, seu desenlace mostra-se ainda avesso ao pensamento racional ou, pior, coloca a razão como a inimiga do homem. Não blasfeme, amigo pensador. Não ande em círculos. Não queira propor racionalmente o apupo da razão. A razão é incontestável, pois que você a fortalecê-la ainda mais ao querer derrotá-la usando sua própria força. Do contrário, apenas um ignorante seria capaz de propor a derrocada da razão através de argumentos irracionais. A razão é o nosso estandarte, nossa mãe e nosso pai, é a luz que nos guia em meio às trevas da ignorância humana. Trate-a bem e não renegue às suas raízes de filósofo racionalista. Não queremos brigar, queremos construir, queremos chegar mais longe, alcançar novos estágios de consciência e conscientização. Usemos a razão como os degraus de uma escada que nos levará até lá, até onde queremos chegar, até a paz entre os homens, até a igualdade, até um mundo de pensadores, até a supremacia do bem comum, até... até a super-sociedade.

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Por Francisco Prosdocimi