sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Sobre quando eu concordaria com a sociedade do instinto

"Chegamos a essa convicção pela conclusão de que o homem que mais goza de faustosa magnificência é justamente o que menos dela necessita; (...)"
Epicuro, Pensamentos

Lendo Epicuro penso ter entendido melhor vários passos de sua cadeia argumentativa em prol da sociedade do instinto e sua crítica à razão. O que argumenta, se lhe entendo bem, é basicamente que nossa consciência nos seja um fardo. Creio que consciência seja um nome mais apropriado para este "conhecimento de si" do que o termo razão, que você tem utilizado. Penso que não criticas a razão e, sim, a consciência. A consciência vem precedida da razão, a consciência parece levar à razão, mas a consciência não é a razão. Considero a razão como um artifício de alguns seres conscientes para melhor entenderem o universo ao seu redor.

Assim, a crítica à esta sociedade em que vivemos basearia-se no fato de que sabermos o que somos, quem somos e qual o nosso lugar no universo nos trás um forte sentimento de angústia e pesar. Como queremos ser felizes e gozar ao máximo, sem nos preocuparmos com idiotices, nossa consciência acaba se tornando nossa inimiga. Penso que tenha como premissa também que "todos os outros animais são mais felizes do que o homem", dado que como Epicuro, você parece acreditar que "o homem que mais goza de faustosa magnificência é justamente o que menos dela necessita". Então, se ele de nada necessita, ele apenas vive sem pensar, ele age como um animal, ele segue à risca todos os seus instintos e tenta viver assim tanto quanto puder, somente obedecendo às suas necessidades mais básicas e urgentes. Incapaz de prever o futuro, este ser de puro instinto vive apenas o presente. Acorda quando lhe dá vontade e tem fome, aí então precisa preocupar-se em conseguir comida. Se tem sorte e é capaz disto conseguir, pode ficar se preocupando com alguma outra coisa ou com procurar alguma fêmea até o momento em que outro instinto básico lhe bata à porta. Aí então seria hora de beber uma água, defecar ou dormir mais um pouco. Uma sociedade de seres assim seria mesmo inimaginável e, mais do que isso, totalmente desnecessária, uma vez que cada um cuidaria apenas de suas necessidades e ponto final. É mesmo assim que observamos a natureza e, definitivamente, nunca tive a impressão de me deparar com um animal que me parecesse infeliz. A liberdade na sociedade do instinto seria total e dependeria apenas da vontade de cada um e da capacidade para poder fazê-lo chegar ali, acolá, alhures.

Ora, a sociedade do instinto então prega que voltemos a ser animais? Ou ela prega que nos pareçamos mais com animais, mas guardemos um pouco do que aprendemos em nossa experiência na sociedade? Se ela prega que voltemos a ser animais, ela torna-se absurda e impossível de ser alcançada, pois toda a sociedade já está viciada nesse modo de ser e, à menos que um holocausto destruisse todo o mundo e, com ele, alguns módulos cerebrais humanos, não conseguiríamos nos ver livre dela. Mesmo com o holocausto, seria muito mais provável o surgimento de uma nova sociedade como esta que temos, do que a volta a um estado animal. Se a sociedade do instinto prega que nos pareçamos mais com sociedades animais, então o ponto a se discutir seria: quais os pontos-chave de uma sociedade do instinto? Minha própria e tão sonhada sociedade ideal, montada por pessoas bastante esclarecidas e disposta a gastar boa parte de seus tempos de vida em prol da ajuda ao próximo e da auto-gestão da própria sociedade, poderia muito bem ser uma sociedade mais próxima do instinto. E muito provavelmente seria, em muitos aspectos. Na contra-mão desta sociedade instintiva, entretanto, prego a educação filosófica de todas as pessoas. As pessoas acabariam por se parecer mais com animais e a seguir seus instintos por estarem desligadas de qualquer padrão pré-estabelecido sobre qualquer coisa. Aquele que tudo questiona, não pode ter um padrão fixo, ele terá padrões variáveis ao longo do tempo, ainda que seguindo uma linha comum derivada diretamente a partir de sua natureza biológica e, mais especificamente, de seus genes e da interação destes com o meio ambiente e sua sociedade.

O quero, portanto, saber, é: O que você prega: (1) que voltemos a viver como animais e retornemos à sociedade do instinto que já tivemos quando habitávamos a selva?; ou (2) que nossa sociedade seja a mais próxima possível de nossos instintos?

Se prega a primeira derivação, penso que é um louco e que, como os orientais, sonha em se transformar em uma águia ou renascer na pele de algum animal sem preocupações racionalistas quaiquer. Se prega a segunda, penso que pode ter razão. E então, pergunto-lhe: quais seriam as modificações-chave a serem feitas nesta atual sociedade que temos para levar-nos mais diretamente à sociedade do instinto que imagina? Uma vez que estas modificações principais se tornem tão bem argumentadas que sejam auto-evidentes, penso que poderá agir diretamente no intuito de transformar nossa sociedade em algo assim. Ou será que pretende apenas viver aqui neste blog, neste mundo das idéias?

sábado, fevereiro 17, 2007

À filosofia do instinto.

Creio que estamos progredindo, meu caro. De tudo o que dissemos, já concordamos em boa parte, o que é salutar, como discordamos ainda em muita coisa, o que é estimulante. E assim, salutar e estimulante, deve ser toda boa discussão.

Quando disse que "discordo veementemente de sua proposição do instinto como inimigo" é porque a idéia que ficou é que o instinto deve ser tratado assim; que sua maior parte é inimiga. Três trechos seus demonstram essa idéia:

"Assim como estudamos nossos inimigos para conseguir derrotá-los, devemos também estudar nossos instintos sociais para saber ao certo como domá-los";

"A sociobiologia permite, ao mesmo tempo, que estudemos nós mesmos e a parte de nós que é nossa inimiga" e

"Somente ao nos conhecermos e conhecermos também o 'inimigo social biológico' que trazemos dentre de nós, podemos tornar o mundo um lugar melhor."

É comum mesmo entre biólogos pensar que o homem que mata age biologicamente, irracionalmente, mais perto do bicho, e que a fria razão humana estaria de antemão mais próxima da justiça, da moral, da paz e da felicidade, quando o uso mais comum da razão é apenas tentar justificar o instinto. Acredita-se que a razão estaria mais próxima do bem, uma vez que é a característica humana por excelência. Apenas a característica mais humana poderia estar perto do bem, uma vez que apenas o nosso bem é um bem humano, como é também, diga-se de passagem, o bem divino, também chamado ópio do povo.

Falácias! Nosso bem é, em larga escala, apenas o bem animal. Conforto, saciedade e descanso. Bem-estar. É o que todos buscamos, no final, dos besouros ao resto. Devemos parar de nos drogar e atentar para o lado terrestre, físico, materialista num sentido que ainda não havia sido descrito, para o bem, como para o mal.

O perigo em pensar o instinto como mal, ou tanto mal como bem (ou como você ainda parece ver: mais como mal do que como bem, quando é justamente o contrário), é que se trata de uma metáfora subliminar e descuidada entre acima e abaixo na árvore evolutiva, estando o bicho ancestral abaixo, e o homem racional acima, com uma perspectiva religiosa, em que temos o mal, o inferno e sua legião abaixo, Deus e os justos, acima. Novamente outra metáfora perigosa: a Terra embaixo, a realidade física e ordinária, materialista e animal, a que não tem valor no imaginário popular (só nos cartórios e nos leilões) abaixo, junto do mal e do macaco da árvore evolutiva, na direção das raízes; e os céus acima, povoados de deuses e anjos, distante da realidade mundana, pobre e violenta; acima rumo ao conforto e alegria, a vidas futuras, rumo a tudo que o dinheiro hoje paga, acima, rumo ao ideário popular e religioso, na direção da irracionalidade, e também da racionalidade, da razão e todos os seus limites e limitações, a última novidade evolutiva, a menos aprimorada, a mais rústica, o progresso em termos biológicos, culturais e tecnológicos, o progresso na história, o futuro da esperança e da suposta felicidade, para o alto e avante!

Quanta mentira, quanta propaganda! É assim que as dicotomias e os fenômenos subliminares agem no dia-a-dia. E nos pegamos enxergando cauda como sinônimo de capeta. E o povo pobre acha que a Terra pertence ao mal, que o bem só pode estar longe, no alto inatingível, entre vertebrados gasosos que teriam criado um homem com vergonha da própria nudez.

Se isso não é chamar o instinto de inimigo, não sei o que seria. Sun Tzu, o grande sábio bélico da antiguidade chinesa, falou sobre inimigos que são como nós, não parte de nós. Além disso, minha sugestão para o reencontro com o instinto não é pela guerra, mas pelo convívio progressivo e calmo, pacífico e alegre. Só pelo conhecimento, e guerra é espoliação. Isso limita sua analogia, embora talvez não a invalide. Pessoas deveriam, antes de tudo, ser conquistadas com o carisma, se possível, e domadas apenas quando ameaçam nossa liberdade e integridade. Esse talvez seja o ensinamento de Tzu. O inimigo interno deve ser conhecido justamente para ser domado, mas quem é, então, o inimigo?

A meu ver, na sociedade moderna, a razão de uns poucos é o que ameaça a liberdade e a integridade da maioria; a culpa não está no instinto. A culpa está nos que trabalham mais, nos que pensam mais, nos que querem mais, tudo tão mais numa escala ascendente, meteórica, propiciada pela razão. A razão age no espírito como uma droga, uma cocaína que força as pessoas a quererem o acima, o amanhã, e passarem esquecidas do agora, do aqui. Devemos reestudar, reprojetar e reeducar a razão. Aí, sim, poderemos dizer que temos muito mais amigos do que inimigos.

Os instintos sociais são nossa única régua, nosso único parâmetro do que é desejável e do que não é. Tudo que se afaste do instinto criará um atrito, pois as pessoas de todas as partes se afastarão do instinto em direções diferentes e agirão diferentemente, sem se entender. Se se aproximassem do instinto, sua relação seria como azeite em juntas enferrujadas, que deslizam suavemente. A lógica do senso-comum falaria por si só, e poderíamos passar a usar apenas o mínimo de razão necessária à manutenção da sociedade. Pois a razão, ainda que melhorada, permanece ineficiente, demasiado custosa e muitas vezes desnecessária.

Não prego que "a amoralidade é sem dúvida o imperativo universal que está além do homem". Que me importa o que está além do homem? Quero o que está NO homem. Porque já está lá, em algum lugar, e nós devemos encontrá-lo. Nada está além do homem. O que está no homem é sua base, sua história, sua diversidade, sua força, seus exemplos e potenciais, e o que está além do homem só pode estar no intelecto de um único homem, em sua imaginação, em seus planos. Que planos se tornem realidade, e veremos se confirmam ou contradizem o instinto, e mediremos daí seu potencial para o sucesso.

A amoralidade é apenas o princípio de estudo, a percepção de que nossa moral é apenas a NOSSA moral enquanto povo, e que há outras culturas igualmente diversas. Há socialismo e capitalismo, nazismo e fascismo (embora os últimos, apenas, me parecem tão morais. O socialismo e o capitalismo podem conter muito mais variação moral do que os outros dois). Daí, da ausência, desse oco de morais que surge de morais tão díspares, devemos investigar a moral "por dentro", o leito rochoso sob o solo fino, a moral objetiva, a moral do instinto, menos dividida, menos compartimentalizada, menos deformada por avanços e retrocessos que se acumulam sobre os códices legislativos, ou na forma de tabus, lendas e crendices incompletas, tantas vezes superficiais, simplórias, preconceituosas.

***

O temor de ver no instinto o amigo e na razão o inimigo parece vir do preconceito histórico do progresso. Acredita-se que vivemos melhor hoje do que no passado remoto, ou na idade média, o que é seriamente discutível. Embora alguns de nós tenhamos melhorado em diversos aspectos, como cultura, higiene, saúde, estatura e longevidade, nem todos se beneficiaram igualmente, e criamos duas "raças": uma culta, higiênica, saudável, alta e longeva num mundo em que a outra raça continua inculta, suja, doente, baixa e com pequenas perspectivas em todos os aspectos. E uma raça tem dinheiro e tem poder, e não freqüenta, simplesmente não quer ver nem conviver, com a outra raça. É a raça rica quem mais sofre do preconceito do progresso histórico, é evidente. Daí dar maior apoio à razão. O povo não quer razão, quer alegria e comida.

A saída que sobra para o povo diminuído é a religião. Para quem não pode ter o que sonha, cultura, moda, prestígio, arte, outra saída é o futebol, outra o carnaval. Detalhe que o povo sequer percebe que jamais terá a cultura, moda, prestígio que almeja se não obtiver, primeiro, a razão, o gosto pelo estudo, pelo conhecimento, que lhe dará oportunidades, que lhe mostrará a diversidade do mundo: justamente seu sonho! Mesmo assim despreza a razão, sempre, em favor da alegria imediata. A ingenuidade de tanta gente! Ao mesmo tempo, não conseguem desprezar esses valores e satisfazer-se por completo com o próprio instinto, com seu próprio fruir. Guardam um certo rancor, um certo medo de povo, de não ter razão, de estar desamparado, de ser espoliado todos os dias e ter que voltar pra casa e comer mais feijão. Não que eles pensem nisso toda hora, mas às vezes dói.

Outras saídas são as novelas, a ignorância camuflada de liberdade de pensamento, a crença no ideal do "brasileiro" como povo esperto, super-valorizado e feliz, escondendo as mazelas, desigualdades, injustiças e tudo que os jornais apenas dizem sob o tom sensacionalista de sempre, nunca como realidade digna de análise.

...mas seríamos melhor sermos parecidos, estaríamos todos mais à vontade.

***

"E pode-se prever que haverão ainda de existir infinitas outras morais que nosso cérebro e nossa biologia não nos permitem alcançar. Oh, como somos pequenos e ignóbeis."

Por quê, ignóbeis? Por quê, pequenos? Acaso temos obrigação ou necessidade de compreender outras morais, infinitas e até, na prática, inexistentes, uma vez que jamais as alcançaremos? Por que deveríamos ser grandes e racionais, apenas para conhecer o mundo todo? Conheçamos a nós mesmos e ao derredor, já é demais! Não foi justamente nessa vontade infinita de conhecimento que alcançamos a bomba atômica, e o lixo radioativo, e todas as formas de lixo, poluição e desequilíbrio ambiental? O conhecimento pelo conhecimento, ainda? Não vêm justo daí nossos maiores problemas? Da avidez da razão? Mais até que da ignorância, provavelmente? O pequeno parece ignóbil porque olha para dentro de si. Ali ele descobre muito mais coisas que o homem rico e alto com o maior dos telescópios, olhando séculos pela noite infinita, para as galáxias mais distantes, sem nunca ter olhado para o seu próximo.

"Como pesar qual é a melhor moral? Como pesar a moral que decide sobre a melhor moral? Nosso destino será sempre andar em círculos."

Quem anda em círculos acaba cavando um buraco sobre os próprios pés, e é o que viemos fazendo este tempo todo. A melhor moral, como a melhor lei, deve necesariamente ser a menos burocrática, a mais simples, a mais auto-evidente, desembaraçada de preciosismos lógicos e detalhes racionalizantes. Deve ser fácil, justa e razoável, como o instinto. Daí a Navalha de Occam ser um símbolo da universalidade e democracia do espírito científico. Porque embora a resposta mais simples não é necessariamente a mais correta, é a que nos poupa mais tempo, o precioso tempo para viver. Não queremos razão em excesso, queremos tempo para viver. Não queremos ser produtivos, queremos ócio para aproveitar, para preencher com a imobilidade, se for o caso, não precisamos gastar energia pensando, devemos poupá-la dormindo, e sonhando. Essa a idéia oculta por trás da ciência, mas que a própria ciência permitiu, mudando a moral medieval, sobrenatural e opressora, numa moral mais igualitária, curiosa e transparente do mundo moderno, do mundo cientificizado. A moral científica parece ter nos permitido viver com mais tranqüilidade de pensamento.

"Quanto temos perdido informação cultural ultimamente! É uma pena, já fomos tão mais interessantes!" Aqui o filósofo chora sua própria sabedoria. Fomos mesmo mais interessantes, mas o desinteresse parece ser o preço a pagar pela igualdade tão sonhada, pela inteligibilidade de outras culturas, fator imprescindível para evitar as guerras e facilitar nossa permanência como espécie.

"E parece-me que todo esse problema comece mesmo em nosso próprio instinto: o fato de querermos nos parecer com a classe dominante, com os mais ricos e poderosos; isso tem acabado com nossa informação cultural. O instinto, meu amigo, não é sempre bom."

Não, não é. Mas querer parecer a classe dominante não é um instinto mal. É apenas um instinto. E quiça um instinto bom, porque visa o equilíbrio. Mal é a cultura da classe dominante ser tão superior à dominada. Mal é os ricos e poderosos não quererem ceder um metro da distância que os separa dos pobres. Mal é a razão que foi necessária criar, definir, justificar, ocultar dos menos dotados de razão, de forma a tornar possível a desigualdade observada.

Quando a diferença é menor, há menos coisas de que o dominado precisa se privar, menos coisas que se envergonhar, ou que aspirar, ou invejar. Mais uma vez, o instinto é o nosso wireframe, nosso pré-requisito. O que precisamos mudar é a cultura, é encontrar o quadro social onde o instinto se assente mais calmo, menos ofendido, mais disposto a adquirir cultura espontaneamente. A sociedade deve buscar a justiça com o apoio do instinto - o instinto é a lanterna, e a razão a picareta que até hoje tem batido bem mais onde não devia.

Não creio que estamos tão atrelados à cultura quanto ao instinto, muito pelo contrário! Podemos carregar a cultura em qualquer direção, e não podemos mover o instinto um único milímetro. Estamos atrelados ao instinto, somos instinto, disso não resta dúvida, mas quem cria a cultura somos nós, nós inventamos a cultura. A cultura é parte de nós, mas nós somos parte do instinto. A cultura está atrelada à nossa criatividade, à criatividade dos poucos super-homens que precisam existir para mudar a história.

Sua super-sociedade ainda está presa à moral do faz-de-conta, da inexistência de opressão, da salvação de todos pela educação. Termos superlativos, totais, máximas. Sim, uma educação perfeita nos faria muito melhores, mas porque insistir na distância zero entre todos, o que está muito longe do razoável? Numa sociedade livre, a maior disposição pelo trabalho faz alguns construírem casas maiores, e construir ferramentas cujo uso dê maior status ao seu usuário, digamos, permitindo-o escolher as melhores esposas. Ao mesmo tempo, outros preferirão dormir pelos cantos e cantar às estrelas. Por que a distância entre ambos deve ser nula? Por que admitir uma necessidade que ainda não caiu na rede? Caiu na rede, sim, passa a ser peixe.

Sempre haverá alguém disposto a perturbar a ordem para se favorecer, e uma anarquia só se manteria pacífica pela aplicação de alguma lei, pelo estabelecimento dos critérios que regulariam a paz, a liberdade, a procedência de direitos. Ou seja: não existe anarquia pacífica. Sua sociedade quer ser erigida sobre fumaça, e não sobre as raízes da diversidade do instinto. A mesma diversidade que valorizamos do conservacionismo à antropologia também nos leva a querer diferenças, querer altos e baixos no nível em que as pessoas escolhem uma posição baixa, que exige pouca responsabilidade, ou alta, que dá poder em troca de maior responsabilidade. O poder existe, e o relevo sobre as cabeças humanas que representa este poder não é plano!

Dessa diferença de poder devem resultar os frutos, aquilo que se buscou, e o direito a colher os frutos do trabalho é um dos braços da discussão sobre justiça; e aí, meu considerado, aí estamos lascados!

Pense num bebê morto pela mãe incapaz de alimentá-lo. O abandono de bebês e o aborto são situações recorrentes sob o espectro da fome, por mães que não têm como alimentar aquele novo ser, em detrimento de outros que chegaram primeiro, onde já foi depositado um trabalho, e que cresceram contra todas as espectativas. No reino animal, os mamíferos de bolsa, como os cangurus, já dominaram meio mundo. Uma de suas vantagens evolutivas é a facilidade de abandonar filhotes em desenvolvimento: basta tirá-los da bolsa. Muitas mães sob condições críticas chegam a não dar nome às crianças até a idade em que sua sobrevivência se confirme, o que pode levar anos. Sob a égide da fome somos forçados a preferir a sobrevivência dos que já existem há mais tempo - valem mais que aquele feto, aquela coisa, aquilo que ainda não se tornou o que os outros já são. Onde não cabem todos, escolhas precisam ser feitas.

E quem há de chorar pelo leite derramado? Quem conhecia a criança perdida? Quem reclamará por justiça? A igreja? Qual a diferença entre a morte de um feto e a de uma mãe? Simples: as pessoas que a mãe conhecia. Os vículos afetivos, históricos, até os funcionais, produtivos. Apenas alguém muito frio, sem escrúpulos e sem compaixão pode pensar que a vida da mãe vale tanto quanto a do feto, em toda e qualquer ocasião. Quantos chorariam por um bebê desconhecido? Quem tem mais parentes para sofrer?
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Meu ideal de justiça é algo complexo: a justiça deve ser exigida por quem a quiser. Se uma vítima não tem quem reclame por ela, por que continuar viva? Se alguém teve motivos para matar alguém, a justiça só será exigida pelos que perderam o morto, pelos que sentem a sua falta. Se não existem estes, não existe mais crime. Quais poderiam ser os motivos do agressor? Ciúme, terra, dívida, discussão por futebol, política ou religião. Não importa. Culpar o assassino quando não há outro prejudicado que o cadáver parece-me exagerado. Se alguém sobrevive, que siga a vida. Mas se sentem falta do morto, que seja buscada justiça, e existem várias formas de se fazer isso.

O que acontece quando entregamos a justiça ao Estado é que os casos serão julgados pelas pessoas que não estão envolvidas e que não têm interesse, os burocratas. Pode até parecer lógico à primeira vista, mas não é. As pessoas são mais incomodadas pela justiça hiper-burocrática do que pelo incômodo total de uma sociedade sem justiça centralizada, num ambiente tampão, auto-regulado, homeostático. A justiça feita pelo pequeno em seu próprio interesse. E seria muita a carnificina? Ora, hoje ainda é pouca?

Ainda restaria Estado? Ou nação? Sim, a justiça ainda deveria existir, para lidar com as maiores contendas. Nenhuma força pode ser maior que o Estado. O Estado é formado pelos indivíduos que o compõem, isso justifica um exército, uma justiça, e até um legislativo descentralizado.

A legislação seria escrita pelos próprios interessados, em assembléias que hoje podem ser realizadas a baixo custo com o auxílio do ciberespaço. Cada projeto votado separadamente por comissões populares, como nos referendos, dando-se voz aos especialistas de cada área.

A justiça pública apenas seria acionada quando alguém reclamasse, interviesse por outrém. Essa medida com certeza geraria uma cordialidade, ainda que forçada, que baixaria os níveis atuais de individualidade. Um exaustor para tirar a fumaça atual e permitir-nos pensar com mais calma no próximo passo.

Justiça doméstica, legislativo participativo. Praticamente abolimos dois poderes. E o poder executivo? É bem provável que perca sua função na mesma proporção dos outros dois. Aí sim, os homens começarão a se auto-gerir e depender cada vez menos do governo, que acabará resumido a comitês e conselhos, formados apenas por interessados não-gratificados, que terão tempo de sobra para participar da sociedade, nesta sociedade menos apressada, menos competitiva, mais tolerante, que deve ser a sociedade do instinto. Menos, menos, mais, mais. Nada de zeros e tudos e nadas. Ao instinto, a diversidade. À cultura, o minimalismo ainda diverso. À nós, o futuro. Saúde!


Por Rodrigo Dias

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Moral-instintividade e os caminhos para uma super-sociedade

Ilustríssimo Rodrigo, poderia muito bem começar esta resposta eletrônica a evidenciar os pontos que temos de acordo, assim como parece ter sido proposto subliminarmente por você na mensagem anterior, quando assim procedeu. Entretanto sou homem livre e não aceito ser coagido a reagir de uma maneira alguma que seja diferente daquela a qual desejo intrinsecamente. Dessa forma, começo minha resposta como bem entendo, ou seja, desta forma.

Ora, jamais comentei que o instinto fosse apenas um inimigo. O instinto pode ser visto como amigo várias vezes e, além do mais, como definirmos inequivocamente o conceito do que seja um "inimigo"? De fato, desconheço qualquer característica humana ou inumana que seja seja de todo boa ou ruim e, além disso, todas as definições humanas de amigo, inimigo, bom ou ruim apresentam um discutível e evidente cunho moral. Do que devemos nos lembrar, apesar de tudo isso, como bem prega o senhor, que a amoralidade é sem dúvida o imperativo universal que está além do homem.

Pois que somos homens. Pois que temos nosso telencéfalo desenvolvido. Pois que somos pretensiosamente racionais. Pois que para tudo que façamos, tendemos a associar a esta ação um nível tal mais relacionado ao bom ou ao mau. "Quão bom é isso?", "Quão mau é aquilo?" E podemos observar ainda que esta dicotomia tem origem em nossos próprios instintos, pois você mesmo concorda que também nossos irmãos chimpanzés apresentam o mesmo tipo de comportamento.

Eis, portanto, que toda a moral humana origina-se a partir de nossos instintos. Já concordamos que a natureza do universo é amoral, mas será também a evolução dos organismos amoral? A um observador externo, certamente sim, e parece um contra-senso tentar salvar uma zebra de ser devorada por um leão. Mas ponha-se no lugar da zebra: como encarar com amoralidade o fato de perder sua existência para tornar-se alimento de um outro animal, ainda que o suposto rei deles? As zebras não serão amorais e fugirão, tanto quanto puderem, do faminto felino. A evolução nos ensina a preservar nossa sobrevivência; e este me parece ser um valor claramente moral. Talvez num mundo de bactérias e de cadeias ecológicas bacterianas, não exista per si nenhum tipo de moral-animal e que estes organismos não tenham nenhuma punção por fugir ou perseguir outros que lhe servam de alimento. Nesse inóspito mundo microbiano talvez irreal, seria de se supor que servir ou não de alimento para outrem dependeria antes de caracteres ambientais (como concentrações de moléculas no meio) do que de caracteres biológicos (como o instinto de fuga). Pois que, em certo momento, algum animal parece ter aprendido que fugir de um certo gradiente-predador parecia "bom" e que ir em direção a ele parecia "ruim". Os organismos que tenham feito esse tipo de associação, conseguiram vencer a luta pela sobrevivência contra aqueles que iam na direção de seus predadores ou mesmo contra aqueles que permaneciam indiferentes a eles. Uma certo tipo de moral evolutiva nasceu nesse instante.

A moral, portanto, o que quer que seja ela, vem diretamente do nosso instinto e de nossas pulsões mais básicas de sobrevivência. É incrível observar como tantos antes de nós simplesmente não conseguiam perceber que a moral humana está direta e intrinsecamente ligada ao animal humano e, assim, aos nossos instintos. É de se imaginar também que outros animais terão também outras regras morais; e também algumas das mesmas que temos, dado que todos fomos moldados pelo cego processo da seleção natural.

A moral socialista é um tipo de moral humana. Assim como, sussurremos, a moral nazista. Todas as morais que produzimos são morais humanas, parcialmente baseadas em alguns de nossos instintos. E pode-se prever que haverão ainda de existir infinitas outras morais que nosso cérebro e nossa biologia não nos permitem alcançar. Oh, como somos pequenos e ignóbeis.

Ora, voltemos à nossa discussão principal, o valor moral que associa todos os eventos relacionados ao instinto como "bons" e que você defende tão entusiasticamente, é só mais uma das morais que podemos defender; considerando que somos o que somos. Uma outra moral, que associa determinados fatores instintivos ao bem e outros ao mal, é aquela que defendo. Como pesar qual é a melhor moral? Como pesar a moral que decide sobre a melhor moral? Nosso destino será sempre andar em círculos. Vale lembrar ainda que, a um observador externo e considerando a natureza mais pura do universo, todas as morais são amorais! Mas não deixamos de viver apenas porque temos a certeza da morte; trabalhemos mais sobre esta maravilhosa arte do filosofar.

Sobre esta moral-instintividade, vale ainda notar que o fato dos mais diferentes povos associarem comportamentos semelhantes ao "mal" -- como o fazem com o assassinato ou o estupro -- vem mais uma vez corroborar a intrínseca ligação de nossa moral com nosso instinto. Todas as semelhanças entre os valores morais observados entre diferentes culturas humanas que jamais puderam trocaram informações, podem ser atribuídas, com total propriedade, à uma herança moral oriunda de nossos instintos. Não há sociedades de todas as formas imagináveis e, de fato, a forma como o homem se organiza socialmente não me parece assim tão diversificada; haja vista que a maioria de nós não preza a criatividade com o louvor que ela merece. A maioria parece querer ser, simplesmente, a maioria. E parecem se adaptar bem a esta massificação que tem ocorrido cada vez com maior intensidade, agora em escala global e mundial, unindo todo o mundo com um mesmo pensamento, uma mesma cultura, um mesmo tudo. Quanto temos perdido informação cultural ultimamente! É uma pena, já fomos tão mais interessantes! E parece-me que todo esse problema comece mesmo em nosso próprio instinto: o fato de querermos nos parecer com a classe dominante, com os mais ricos e poderosos; isso tem acabado com nossa informação cultural. O instinto, meu amigo, não é sempre bom.

Concordo com o senhor também quando dizes que minha teoria nos fará, para sempre, brigar com nossa própria natureza. Esta é uma triste verdade. Desejo mesmo afastar de nossa sociedade aqueles valores que associo moral-instintivamente como danosos a ela.

***

Mas, por um instante, permita-me afastar esta nossa agradável discussão dos temas biológicos e passemos a tratar puramente da questão do social. Tentemos nos esquecer -- tanto quanto pudermos -- de nossos instintos e imaginemos como se constituiria um sociedade ideal qualquer.

Não podendo fazer de forma diferente para tanto -- quiçá isso nos fosse possível! --, consideremo-nos também baseados em tudo aquilo que aprendemos ao longo de nossa civilização ocidental, cristã, católica, falsamente democrática, imperialista, consumista, capitalista, casual e fortuita. Se o instinto nos é inescapável -- e disso não resta a menor dúvida --, assim também é nossa condição social e histórica .

Além de estar de acordo com os pensamentos dos mais diversos filósofos residentes nas mais diversas nações e períodos do pensamento humano; e tratando agora sobre esta nossa utópica sociedade ideal, seria de se imaginar, moral-instintivamente (dado que toda moral tem uma base instintiva), um lugar onde não houvessem injustiças contra quaisquer tipos de indivíduos. Um lugar onde todos nascessem socialmente iguais e tivessem as mesmas oportunidades na vida. Onde se pudesse ter ao menos um mínimo para a sobrevivência, onde todos fossem bem educados, onde os indivíduos fossem livres, onde pudessem fazer o que bem entendessem durante todo o tempo e onde prezassem pelos bens de sua sociedade tanto quanto prezam por seus bens pessoais. Oh, como gostaria de viver neste lugar!

Ora, a dominação seria palavra desconhecida neste lugar. Ali, se perguntássemos a todos aqueles que se diziam "querer" ser dominados, se trocariam de papel com os dominadores, eles não responderiam um exultante "SIM!" antes que um único segundo tivesse se passado, pois lá simplesmente não se entenderia o conceito de dominar ou ser dominado. Embora se entendesse ali, perfeitamente, o conceito de "querer", com ou sem negrito.

Me vêm agora à cabeça, a história sobre aquelas crianças brincando reunidas. Imagino-as a vivendo em minha sociedade ideal, à qual prefiro chamar de super-sociedade. Uso seu próprio exemplo para escolher aquelas que têm uma maior habilidade de liderança a ocuparem, moral-instintivamente, o lugar de líderes em algum movimento social que porventura lhes passasse em mente. Às outras, terão outros instintos e dons: talvez tenham um ouvido muito bom e se tornem profissionais da música, umas terão força extrema e poderão construir monumentos, outras serão boas em matemática ou trabalharão bem a madeira. Alguns ainda terão dons para os esportes, mas terão mais prazer em ser cientistas. Deixemos que elas mesmas escolham o que querem fazer. Nenhum ser humano é completamente idiota e todos gostam de realizar algum tipo de trabalho. Demos a eles o trabalho que quiserem e remuneremos igualmente a todos. Não há de existir profissões melhores ou piores, apenas profissões e profissões. Assim, com todos fazendo o que gostam, é ridículo querer pagar mais a uns do que a outros. Todos, portanto, seriam igualmente remunerados. Eduque a todos dizendo que o bem coletivo é a mais cara das virtudes, mostre a eles como a desigualdade e o desprezo pelo social esteve em vias de acabar com a humanidade no século XXI. Assim teremos uma sociedade auto-sustentável, onde muitos sacrificarão uma parcela significativa de seu tempo a esforçar-se para manter a sociedade viva e o bem estar comum. Deus algum, ainda que inexistente, teria preferido o Olimpo a esta super-sociedade.

***

Seguindo esta lógica devemos nos esforçar, portanto, para tentarmos aproximar, tanto quanto pudermos, nossa sociedade atual desta super-sociedade. A chave para isso chama-se educação. Mas perceba: não prego a tirania memética e a lavagem cerebral dos indivíduos. Prego a boa educação e a capacidade de fazer todos compreenderem, racionalmente, o motivo pelo qual devem prezar pelo bem comum. Certamente entenderão; uma super-sociedade só pode ser construída por super-homens.

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De fato, ninguém é igual a ninguém, mas também não são todos tão diferentes assim. Ao considerarmos todas nossas ações e dons, nossa natureza biológica limita o que podemos ser ou fazer para ambos os lados -- do pior ao melhor -- e nos apresenta um conjunto limitado de possibilidades por onde seguir. Num exemplo talvez excessivamente exagerado, um surdo sem qualquer estudo jamais será bom compositor.

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Sobre a distância entre nós e eles, os governantes, realmente isso parece consistir em um problema preocupante em sua sociedade do instinto. De fato, a super-sociedade que prego é totalmente anárquica, de maneira que a distância entre dominado-dominador será a mínima possível e igual a zero. Não haverão dominadores nem dominados. Pois que a super-sociedade evoluirá de tal modo que chegará a um ponto em que também não se lerá mais a palavra "governo" senão nos livros de história.

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Devo confessar, cá entre nós, que achei um tanto quanto despropositada essa sua conclusão, pois além de hobbesianamente discutível, tenta a chegar a uma conclusão definitiva -- algo que estamos zaratustramente longe. Como se nisso não se bastasse, seu desenlace mostra-se ainda avesso ao pensamento racional ou, pior, coloca a razão como a inimiga do homem. Não blasfeme, amigo pensador. Não ande em círculos. Não queira propor racionalmente o apupo da razão. A razão é incontestável, pois que você a fortalecê-la ainda mais ao querer derrotá-la usando sua própria força. Do contrário, apenas um ignorante seria capaz de propor a derrocada da razão através de argumentos irracionais. A razão é o nosso estandarte, nossa mãe e nosso pai, é a luz que nos guia em meio às trevas da ignorância humana. Trate-a bem e não renegue às suas raízes de filósofo racionalista. Não queremos brigar, queremos construir, queremos chegar mais longe, alcançar novos estágios de consciência e conscientização. Usemos a razão como os degraus de uma escada que nos levará até lá, até onde queremos chegar, até a paz entre os homens, até a igualdade, até um mundo de pensadores, até a supremacia do bem comum, até... até a super-sociedade.

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Por Francisco Prosdocimi

domingo, fevereiro 11, 2007

A AMORALIDADE COMO PRINCÍPIO

Caro Francisco, sou obrigado a concordar por alto com sua argumentação, ao mesmo tempo em que discordo de diversos pontos. Concordo que a compreensão de nossos instintos nos ajudará a moldar uma sociedade mais agradável, mais justa, mais feliz. Concordo que a sociobiologia já foi usada para o mal, mas nem por isso devemos perder de vista seu potencial para o bem, como concordo que esse bem só será alcançado com o estudo do comportamento humano em larga escala, e não através do mapeamento genético de indivíduos, o que pode levar a cenários terríveis de preconceito e exclusão, como no filme de ficção-científica Gattaca, que você cita.

Entretanto, o problema é justamente de onde extrair a moral que permite distinguir entre o bem e o mal para uma sociedade: de onde vêm nossos valores e nosso julgamento acerca do que é uma sociedade melhor? Discordo veementemente de sua proposição do instinto como inimigo. É como dizer que o maior inimigo de uma árvore são suas raízes, ou os nutrientes em seu solo, ou a água e a luz do Sol que permitem sua fotossíntese. Ou como dizer que o maior inimigo das aves migratórias é sua capacidade de se orientar à noite pelas estrelas, ou pelo campo magnético da Terra. Trata-se, no meu entender, de uma visão equivocada do instinto.

Infelizmente nossos mais caros sentimentos sobre o bem e o mal vêm de nossa civilização ocidental, cristã, católica, falsamente democrática, imperialista, consumista e capitalista, entre muitos outros ismos que mal saberíamos distinguir, tão profundamente embrenhados estamos nessa selva milenar de valores arraigados. Pudéssemos ver o mundo aos olhos de vikings antigos, ou de orientais budistas, ou de nativos americanos pré-Colombo, e perceberíamos como todos esses valores estão longe de ser necessários, sendo apenas contingentes, ou seja, tendo surgido e se fixado apenas pelos acasos e fortuidades da história.

O instinto, é bom que tentemos defini-lo, é para mim aquela parte da humanidade que independe da cultura, embora possa se expressar variavelmente conforme a cultura. Por exemplo, todos temos o instinto de procurar comida quando estamos com fome, mas o comportamento associado a este instinto será diferente caso uma pessoa se encontre dentro de um avião, ou em um ônibus, ou num velório, ou na sala de aula, ou na própria casa. Ao longo da história a cultura vai e vem, costumes surgem e desaparecem, mas tudo gira em torno do instinto, o único imutável, o único que, erigido sobre nossas bases genéticas, é tão constante quanto nosso número de dedos, nossa percepção auditiva ou a estrutura química de nosso suor.

O produto do instinto muda conforme o meio, mas sempre que o meio retornar ao ponto de partida, o produto do instinto tornará a ser o mesmo.

Podemos, então, esperar extrair algum conceito moral desta entidade ultra-milenar que é o instinto? Quando você diz que as pessoas são iguais, e que não devem existir mais machos-alfa, ou a dominação de uns sobre outros, creio que trata-se de sonhos utópicos, e até mesmo indesejáveis. Coloque crianças juntas, em qualquer lugar do mundo, e logo se definirão os líderes, os árbitros das regras nas brincadeiras, como surgirão também os párias, aqueles que quase sempre perdem e são humilhados pelos demais. Criar uma sociedade que ensine as crianças a não agir assim pode funcionar, mas tão logo esta nova cultura desapareça, ou seja substituída por outro modismo, as pessoas tornarão a se dominar umas às outras, como sempre fizeram.

O instinto é inescapável. O que podemos fazer é moldar a sociedade de forma que a atuação do instinto cause o menor mal possível.

Mas então voltamos ao ponto de partida, o que é o mal? O que é o bem? Na natureza não existem tais conceitos, é o que se pensa, então por que damos tanto valor a eles? Seriam apenas uma maneira de nos distinguirmos dos demais animais? De mantermos viva uma parte daquele antropocentrismo outrora tão caro a nós, e que pouco a pouco foi se perdendo através dos últimos séculos, de Galileu a Darwin? Chimpanzés mudaram seu comportamento em relação a uma fêmea que assassinou o filhote de outra, tratando-a com desdém, retirando qualquer privilégio que ela antes possuísse, seja na partilha alimentar, na definição dos locais de sono ou no hábito de esperar os que se atrasam durante uma caminhada. E essa mudança durou bastante tempo. Serão os chimpanzés capazes de definir certos atos, como o assassinato de uma criança indefesa por outra fêmea que não a sua mãe, como algo intrinsecamente mau? Serão eles capazes de julgar uns aos outros conforme sua própria moral? Eu acredito que sim, e não tenho motivos para duvidar dessas e de outras capacidades de nossos primos evolutivos. E creio ainda que o conceito de bem e mal é tão instintivo neles quanto em nós, seres sociais que somos.

O bem, num contexto social, pode ser visto apenas como a capacidade de uma sociedade de se preservar, de manter sadios seus integrantes, a despeito do que ocorra com os integrantes de outras sociedades. Daí o assassinato ser mau numa cidade, mas não numa guerra. Hoje, é claro, a globalização está redefinindo o conceito de sociedade, e pela primeira vez é comum sentirmos horror ante o assassinato de inimigos de guerra do outro lado do planeta.

Por outro lado, a guerra, como a dominação dos mais fracos pelos mais fortes, sempre fizeram parte do instinto humano. Como podemos conciliar isto com uma sociedade ideal, onde haja o mínimo de guerras e de exploração? Onde haja o mínimo de sofrimento - posto que é do nosso instinto fugir do sofrimento? Uma parte da resposta está dada: a globalização e as uniões entre os países, como ocorre hoje na Comunidade Européia, e como se tenta arduamente no Mercosul, estão ampliando nosso conceito de sociedade. No dia em que cada cidadão estiver convicto que sua sociedade é todo o planeta Terra, com seus mais de 6,5 bilhões de pessoas, as guerras serão vistas com um repúdio muito maior.

Entretanto, guerras civis são tão ou mais comuns que guerras entre sociedades distintas, e também têm como mote causador a disputa pelo poder. Sim, o poder, o alimento dos espíritos fortes, guerreiros, tão necessário a certas mentes como o oxigênio que respiramos é para todos nós.

As pessoas não são nem nunca serão iguais. Para a maior parte do povo, é mais confortável, mais simples, mais cômodo seguir o dono do poder, do que lutar para ter poder. A mesma diferença genética e ambiental que faz uns altos e outros baixos, uns escuros e outros claros, uns rápidos e outros lentos, faz de uns mais ávidos por possuir poder do que outros. Se a dominação de uns por outros é instintiva e, portanto, inevitável, é porque alguns querem ser dominados, enquanto outros querem dominar. O que pode ser transformado na sociedade, em prol do maior bem-estar geral, é a distância existente entre o alto e o baixo poder, ou entre o poder e a ausência dele.

Numa tribo de caçadores-coletores, qualquer indivíduo mora a menos de duzentos passos da casa do cacique, e as decisões comunitárias são tomadas pela participação de todos falando ao mesmo tempo, até que um consenso seja alcançado. Em nossa pseudo-democracia moderna, a distância do mais pobre dos mortais até o presidente é de milhares de quilômetros, tanto físicos quanto burocráticos, sendo que a distância física é, sem dúvida, a menor delas. Toda a estrutura da sociedade, sua justiça, por exemplo, é construída de forma que o poder paire estratosfericamente acima da cabeça do indivíduo comum, e esteja ali a salvo para perpetrar seus mandos e desmandos, como aumentos do próprio salário, a bel prazer, enquanto o povo assiste calado, boquiaberto e inerte.

Se é inevitável que uns dominem e outros sejam dominados, a sociedade ideal é aquela onde a distância entre uns e outros seja mínima, de forma que a dominação seja ao menos inteligível, e que o cidadão não entre finalmente em seu caixão sem nunca ter compreendido para que viveu e para que pagou ao Estado mais do que pôde dar à própria família.

Concluindo, o maior inimigo do homem é o próprio homem. São as artimanhas racional e maquiavelicamente projetadas para aumentar o escopo e o alcance da dominação, para esconder os erros da classe dominante e isolá-la dos riscos que a classe dominada lhe impõe. Proponho como ainda o maior inimigo do homem a sua mais recente habilidade, a última e mais imperfeita inovação evolutiva, sua própria razão.

Por Rodrigo Dias

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Sociobiologia e Moral

"Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas..."
Sun Tzu, A arte da guerra

O tema de estudo da sociobiologia consiste em saber como nossos instintos moldam nosso comportamento social. O que queremos, os sociobiologistas, é encontrar padrões gerais do comportamento humano para que possamos moldar nossa sociedade de forma a levar nossos instintos em consideração e podermos nos educar de forma a nos tornar "melhores", segundo nosso próprio conceito moral do que seja "melhor".

Sabermos que temos um instinto agressivo, por exemplo, é importante para que possamos inventar alternativas sociais para diminuir essa nossa agressividade e tornar a sociedade um lugar melhor para vivermos -- novamente de acordo com nosso conceito moral sobre o que seja o "melhor". A sociobiologia deve ainda estudar o ser humano de uma forma estatística, não pontual. Não devemos observar os genes de cada um para descobrirmos suas habilidades, não queremos viver em um mundo GATTACA, não é isso que pregamos! Entretanto, é importante sabermos como os humanos se comportam, de forma geral, e devemos conseguir meios de nos educarmos segundo nossas mais virtuosas regras morais para nos tranformarmos naquilo que desejamos nos tornar.

Se sabemos que nossos instintos animais nos levam a realizar atos moralmente questionáveis, isso não deve nos trazer uma resignação, não deve nos levar a pensar "ah, se fomos moldados assim, isso é o certo". Não! Nosso instinto não está correto!, nosso instinto foi moldado para nos fazer sobreviver às gerações e ao tempo como animais. Mas não somos apenas animais, agora. Somos inteligentes! Temos filosofia, moral, pílulas anti-concepcionais, sociologia e política; estamos cada vez mais longe da soberania e do jugo de nossos genes egoístas. Por muito tempo fomos escravos do autoritarismo genético, mas é hora de nos vermos livres desse tipo de opressão biológica. Finalmente conseguimos estabelecer uma distância entre nossa biologia e nossas atitudes. Nosso instinto prega a desigualdade, a existência de machos-alfa, a dominação de uns sobre outros. Não é isso que queremos para nossa sociedade!

Assim como estudamos nossos inimigos para conseguir derrotá-los, devemos também estudar nossos instintos sociais para saber ao certo como domá-los. O estudo da sociobiologia pode transformar nossa sociedade em um lugar melhor para vivermos*. Sabendo como nos comportamos da forma mais crua e rústica possível, nosso estado animal, podemos assim produzir alternativas sociais para nos transformarmos em seres mais humanistas e preocupados com o bem comum. Estudando a nós mesmos, podemos descobrir que todas as crianças precisam de aulas de sociologia, que devemos nos ensinar desde pequenos que somos iguais, que todos devem ser consideramos como iguais. Devemos ensinar nossas crianças a ajudarem o próximo ao invés de dominá-lo, a compreenderem nossas diferenças, a buscarem a virtude na ciência, na arte e na filosofia -- essas que são as maiores realizações humanas.

Não devemos, como fazem os cientistas socias modernos, ignorar nossos instintos, ignorar essa parte de nós mesmos que é nossa amiga e inimiga ao mesmo tempo. Para cada vitória dos cientistas sociais modernos, uma derrota está associada. A sociobiologia permite, ao mesmo tempo, que estudemos nós mesmos e a parte de nós que é nossa inimiga, de forma que, tendo um bom conhecimento sobre os dois lados dessa mesma moeda que somos, possamos nos tranquilizar e não precisemos temer as "batalhas sociais" que travamos todos os dias contra nossos iguais. A epigrafe de Sun Tzu em "A arte da guerra" nunca foi tão moderna. Somente ao nos conhecermos e conhecermos também o "inimigo social biológico" que trazemos dentre de nós, podemos tornar o mundo um lugar melhor. Elogiemos e estudemos, portanto, a sociobiologia.

Por Francisco Prosdocimi


* O estudo da sociobiologia pode também ser usada para o "mal", para transformar nossa sociedade em um lugar "pior". Educando erroneamente a população, podemos fazê-los acreditar na soberania de uma cultura ou raça sobre a outra. Isso já foi feito pela sociedade em diversas eventos, inclusive na segunda guerra mundial. A aplicação da sociobiologia na sociedade deve ser feita de forma cautelosa, responsável e de acordo com princípios humanistas de moral, do contrário ela poderá ter um impacto extremamente negativo sobre os homens.